Grupo Um | Marcha sobre a Cidade
Textos | Ficha Técnica | Imprensa
A Marcha do Grupo Um Sobre a Cidade
Irati Antonio
Considerado um ícone da música brasileira, o álbum de estreia do Grupo Um é resultado de um pensamento musical original e o primeiro LP instrumental independente produzido no Brasil. O disco é importante por criar uma linguagem e uma estética próprias e por quebrar o bloqueio imposto pela indústria fonográfica à música instrumental.
A um só tempo, Marcha elevou o Grupo Um ao patamar de expoente da vanguarda musical e de pioneiro da produção independente no país, desbravando caminhos alternativos para a expressão artística e abrindo as portas de um novo universo de possibilidades num contexto de restrições políticas e culturais do final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
Custeado pelos próprios músicos, o disco foi gravado em 1979, num único dia, no Estúdio Vice-Versa B, do maestro Rogério Duprat, que contava apenas com quatro canais. “O som saiu ótimo, mas foi uma loucura para evitar o vazamento, porque a gente gravou overall (sem isolamento de instrumentos e aparelhos) e, portanto, não podia haver erro, porque não dava para regravar em playback”, contou o pianista Lelo Nazario ao semanário Canja em julho de 1980. O disco foi registrado “quase efetivamente ‘ao vivo’: o lado ‘A’ inteiro foi gravado em uma tomada!”, recorda o baterista Zé Eduardo Nazario.
A estreia foi em 1980 no Teatro Lira Paulistana, ponto de encontro da vanguarda paulista na época. Síntese de elementos da música erudita contemporânea, do jazz moderno, da percussão de ponta e da rítmica afro-brasileira, Marcha Sobre a Cidade causou um grande impacto no público e na crítica, que recebeu o disco com entusiasmo e elogios. “O jazz mais criativo e profissional que desconhece barreiras”, destacou Wladimir Soares no Jornal da Tarde, em fevereiro de 1980. Um disco “para quem não parou no tempo”, sintetizou Francisco Teixeira Rienzi, na Tribuna de Santos, também em fevereiro daquele ano. Marcha “representa um passo à frente na música instrumental em nosso país”, festejou José Domingos Raffaelli, no Jornal do Brasil, em março do mesmo ano.
O grande sucesso do álbum motivou o convite do produtor Wilson Souto Júnior, o “Gordo”, para o lançamento de uma segunda edição pelo selo Lira Paulistana em 1981. Uma edição francesa, com capa distinta da original, saiu pela gravadora Syracuse em 1983, ano em que o Grupo Um excursionou pela Europa.
As músicas de Marcha Sobre a Cidade foram criadas a partir de experimentações com as linguagens de vanguarda e já eram apresentadas em concertos desde a criação do grupo. “Estruturas de uma certa complexidade, com alternância de ritmos… mostram o elevado nível… dos jovens músicos”, observou o crítico Roberto Muggiati, na revista Manchete em abril de 1980. O disco “tem apenas seis faixas, todas elas ótimas e instigantes nas suas improvisações jazzísticas”, elogiou Wladimir Soares no Jornal da Tarde, em março do mesmo ano.
A faixa-título, composta inicialmente em 6/8 e com um beat de jazz contemporâneo, “foi se tornando mais livre à medida em que era tocada e aperfeiçoada”, revela Lelo Nazario. O Grupo Um projetou o jovem músico num plano de destaque na cena musical brasileira, sendo reconhecido como pianista de grande virtuosismo e compositor de concepção arrojada. Segundo o crítico José Domingos Raffaelli, em resenha intitulada “Um grupo de vanguarda”, a faixa “Marcha Sobre a Cidade” mostra a “imaginação requintada” de Lelo, “num dos momentos mais empolgantes do disco”. Entre os álbuns instrumentais independentes, Marcha “é o mais denso em inovações … e Lelo Nazario, pianista-líder, parece constituir-se no músico mais completo desta geração”, apontou o crítico João Marcos Coelho na Folha de S. Paulo, em março de 1981.
Além de quatro composições de Lelo, resultado da fusão de influências contemporâneas, o álbum original inclui um solo de bateria de Zé Eduardo Nazario, “com forte inspiração afro”, e um tema emotivo de Zeca Assumpção. Aliás, esse trio foi a pedra fundamental do Grupo Um, a mesma que sustentava a base na banda de Hermeto Pascoal até 1977. (Leia mais sobre as gravações e as músicas no texto de Lelo Nazario e nas matérias de imprensa abaixo.)
Ao longo do tempo, Marcha Sobre a Cidade se tornou um cult, não apenas entre os apreciadores de música instrumental e jazz, como também entre os fãs de jazz-rock. Todas as edições se esgotaram rapidamente, inclusive na Europa, e o vinil se tornou objeto de desejo de fãs e colecionadores.
Em 2002, o selo Editio Princeps lançou o álbum pela primeira vez em CD, numa edição remasterizada por Lelo Nazario no Utopia Studio a partir das matrizes originais e acrescida de duas faixas bônus inéditas, gravadas na mesma época do álbum. Numa bem cuidada edição, a arte do LP foi fielmente reproduzida, trazendo também um livreto que resgata a história do conjunto em textos e fotos.
A edição em formato digital foi comemorada por críticos e admiradores. “Difícil não se emocionar ao ver, finalmente relançado em CD, um disco que é um dos registros mais importantes de toda a música instrumental brasileira”, afirmou o crítico Valter Alnis Bezerra, em uma resenha no site Ejazz, em janeiro de 2003.
“Uma das realizações mais sérias já levadas a efeito entre nós, sem concessões de qualquer espécie”, como destacou o crítico José Domingos Raffaelli, a linguagem aberta e contemporânea de Marcha Sobre a Cidade se colocava, no final da década de 1970, em posição de liderança na vanguarda musical. Hoje, após décadas de seu lançamento, o disco “não envelheceu nada”, permanecendo como um dos experimentos mais audaciosos e avançados da música brasileira.
Marcha Sobre a Cidade por Lelo Nazario
Texto publicado no encarte da reedição do álbum em CD (2002)
Marcha Sobre a Cidade foi gravado em um pequeno estúdio de 4 canais, num espaço suficiente apenas para acomodar os músicos e seus respectivos instrumentos. Nessas condições, as músicas (algumas bastante longas) eram registradas sem interrupções nem overdubs, já que todos os músicos tocavam ao mesmo tempo neste espaço e os microfones captavam todo tipo de vazamento. Já tínhamos gravado em outras ocasiões uma trilha de documentário e todo um material anterior neste mesmo estúdio, de forma que conhecíamos bem as suas limitações. Em compensação, contávamos com um engenheiro de som rápido e competente, além de equipamentos de alto padrão (gravadores AMPEX) e todos os microfones Neumann (valvulados), o que explica a boa qualidade sonora do resultado final.
As músicas do disco original representavam apenas parte do material que tocávamos nos concertos. A faixa-título, Marcha Sobre a Cidade, originalmente escrita em 6/8, foi se tornando mais livre à medida em que era tocada e aperfeiçoada. Na versão final, registrada neste CD, já não se pode definir com certeza onde estão os tempos fortes e fracos, já que alguns tempos fracos são também acentuados. Embora a melodia apresente fluidez e naturalidade, ela nos dá a sensação de estar "flutuando" sobre a base rítmica.
Os nomes das músicas em formato de “fórmula” descrevem, na realidade, um breve histórico da composição, em quantas partes ela foi dividida, as pontes entre dois trechos e quais as fórmulas de compasso adotadas em cada parte. Foram concebidas como um pequeno lembrete da sequência das partes durante os primeiros ensaios, e acabaram se tornando os próprios nomes das composições.
Em 54754-P(4)-D(3)-0 o andamento é extremamente rápido, as trocas de acordes acontecem praticamente em cada tempo do compasso, com a parte central da composição aberta ao improviso livre (mas com tempo curto e definido). [B(2)/1O-O.75-K.78]-P(2)-[O(4)/B-O.75-K77] e Sangue de Negro trazem a influência dos ritmos africanos puros, melodias construídas sobre escalas pentatônicas e um caminho harmônico sofisticado. A Porta do “Sem Nexo” tem uma seção improvisada, mas com seus caminhos definidos previamente. O título é uma brincadeira com certos críticos da época, que não viam sentido na improvisação livre e, portanto, não percebiam a riqueza dos mecanismos criativos inventados para executar e dar embasamento a esse tipo de música (continuam não percebendo até hoje...).
O álbum original se encerra com Dala, de Zeca Assumpção, uma composição com traços fortes de harmonia impressionista, tendo Mauro Senise como solista – que dá ao sax soprano uma sonoridade mais próxima da música erudita do que do jazz.
Esta edição em CD traz ainda dois bonus tracks inéditos: N’daê, na qual todo o grupo toca percussão, acompanhando os caminhos da flauta, e C(2)/9-O.74-K.76, que traz a base rítmica afro-brasileira somada à construção harmônica e melódica contemporânea. Esta última faixa é um registro da formação inicial do grupo, enquanto contava ainda com a participação do grande saxofonista Roberto Sion, substituído por Mauro Senise antes da gravação efetiva do primeiro LP.
Lelo Nazario, maio de 2002
Texto publicado no encarte da reedição do álbum em CD (2002)
Marcha Sobre a Cidade foi gravado em um pequeno estúdio de 4 canais, num espaço suficiente apenas para acomodar os músicos e seus respectivos instrumentos. Nessas condições, as músicas (algumas bastante longas) eram registradas sem interrupções nem overdubs, já que todos os músicos tocavam ao mesmo tempo neste espaço e os microfones captavam todo tipo de vazamento. Já tínhamos gravado em outras ocasiões uma trilha de documentário e todo um material anterior neste mesmo estúdio, de forma que conhecíamos bem as suas limitações. Em compensação, contávamos com um engenheiro de som rápido e competente, além de equipamentos de alto padrão (gravadores AMPEX) e todos os microfones Neumann (valvulados), o que explica a boa qualidade sonora do resultado final.
As músicas do disco original representavam apenas parte do material que tocávamos nos concertos. A faixa-título, Marcha Sobre a Cidade, originalmente escrita em 6/8, foi se tornando mais livre à medida em que era tocada e aperfeiçoada. Na versão final, registrada neste CD, já não se pode definir com certeza onde estão os tempos fortes e fracos, já que alguns tempos fracos são também acentuados. Embora a melodia apresente fluidez e naturalidade, ela nos dá a sensação de estar "flutuando" sobre a base rítmica.
Os nomes das músicas em formato de “fórmula” descrevem, na realidade, um breve histórico da composição, em quantas partes ela foi dividida, as pontes entre dois trechos e quais as fórmulas de compasso adotadas em cada parte. Foram concebidas como um pequeno lembrete da sequência das partes durante os primeiros ensaios, e acabaram se tornando os próprios nomes das composições.
Em 54754-P(4)-D(3)-0 o andamento é extremamente rápido, as trocas de acordes acontecem praticamente em cada tempo do compasso, com a parte central da composição aberta ao improviso livre (mas com tempo curto e definido). [B(2)/1O-O.75-K.78]-P(2)-[O(4)/B-O.75-K77] e Sangue de Negro trazem a influência dos ritmos africanos puros, melodias construídas sobre escalas pentatônicas e um caminho harmônico sofisticado. A Porta do “Sem Nexo” tem uma seção improvisada, mas com seus caminhos definidos previamente. O título é uma brincadeira com certos críticos da época, que não viam sentido na improvisação livre e, portanto, não percebiam a riqueza dos mecanismos criativos inventados para executar e dar embasamento a esse tipo de música (continuam não percebendo até hoje...).
O álbum original se encerra com Dala, de Zeca Assumpção, uma composição com traços fortes de harmonia impressionista, tendo Mauro Senise como solista – que dá ao sax soprano uma sonoridade mais próxima da música erudita do que do jazz.
Esta edição em CD traz ainda dois bonus tracks inéditos: N’daê, na qual todo o grupo toca percussão, acompanhando os caminhos da flauta, e C(2)/9-O.74-K.76, que traz a base rítmica afro-brasileira somada à construção harmônica e melódica contemporânea. Esta última faixa é um registro da formação inicial do grupo, enquanto contava ainda com a participação do grande saxofonista Roberto Sion, substituído por Mauro Senise antes da gravação efetiva do primeiro LP.
Lelo Nazario, maio de 2002
MÚSICOS

Lelo Nazario - piano elétrico, percussão
Zeca Assumpção - baixo elétrico, piano, percussão
Zé Eduardo Nazario - bateria, percussão, tabla, khena do Laos
Carlinhos Gonçalves - percussão
Convidados:
Mauro Senise (1-7) - sax soprano, sax alto, flauta
Roberto Sion - sax soprano (8)
FAIXAS
1. [B(2)/10-O.75-K.78]-P(2)-[O(4)/8-O.75-K77] 7'25”
2. Sangue de Negro 4’33”
3. Marcha Sobre a Cidade 10’23”
4. A Porta do "Sem Nexo" 9’52”
5. 54754-P(4)-D(3)-0 3’06”
6. Dala 4’00”
Faixas bônus no CD:
7. N’daê 5'52"
8a. Festa dos Pássaros 2'50"
8b. C(2)/9-O.74-K.76 11’10"
LP / Independente
Produzido pelo Grupo Um (1979). Gravado e mixado no estúdio Vice-Versa B, 26-27/9/1979. Operador de áudio: Wagner. Assistente de estúdio: Arquimedes. Corte: Joaquim Gonçalves (Vice-Versa). Capa original: Luiz Manini. Desenho: Zico Priester. Foto da contracapa original: Marcos Santilli.
CD / Editio Princeps
Produtor Executivo: Marcelo Spindola Bacha. Masterização: Lelo Nazario no Utopia Studio, abril de 2002. Textos: Zé Eduardo Nazario e Lelo Nazario. Programação Visual: Rodrigo Araujo.
Faixa 7 gravada durante as sessões do LP em 1979. Faixa 8 gravada e mixada no estúdio Vice-Versa B em 1977.
Produzido pelo Grupo Um (1979). Gravado e mixado no estúdio Vice-Versa B, 26-27/9/1979. Operador de áudio: Wagner. Assistente de estúdio: Arquimedes. Corte: Joaquim Gonçalves (Vice-Versa). Capa original: Luiz Manini. Desenho: Zico Priester. Foto da contracapa original: Marcos Santilli.
CD / Editio Princeps
Produtor Executivo: Marcelo Spindola Bacha. Masterização: Lelo Nazario no Utopia Studio, abril de 2002. Textos: Zé Eduardo Nazario e Lelo Nazario. Programação Visual: Rodrigo Araujo.
Faixa 7 gravada durante as sessões do LP em 1979. Faixa 8 gravada e mixada no estúdio Vice-Versa B em 1977.
IMPRENSA
NO LIRA PAULISTANA, UM SHOW QUE SALVA NOSSO POBRE VERÃO
Wladimir Soares – Jornal da Tarde, 25/02/1980
… o Grupo Um faz até quarta-feira no Teatro Lira Paulistana um concerto do jazz mais criativo e profissional que desconhece barreiras para a sua execução. É um concerto de sonoridades ousadas, inventivas e contagiantes, … englobando segmentos de free jazz com elementos de jazz progressivo, misturando informações africanas de raízes balançantes, a insinuações eruditas, mais intelectuais. O resultado é sempre delirante. ... O disco e o concerto têm quatro músicas com nomes compreensíveis … e duas identificadas com equações matemáticas. Na verdade, os nomes não têm tanta importância. Melhor mesmo é a inventividade e o vigor com que elas são apresentadas ao público. Com o jazz do Grupo Um, o verão paulista atinge o seu calor mais intenso.
RUMO AO GRUPO UM
Francisco Teixeira Rienzi – A Tribuna de Santos, 28/02/1980
… Marcha sobre a Cidade… realiza um trabalho próprio e criatvo… é um elepê indicado para ouvintes de jazz atualizados, para quem não parou no tempo. Lelo Nazario (piano eletrônico), Zeca Assumpção (baixo eletrônico, piano acústico), Zé Eduardo Nazario (bateria, percussão), Carlinhos Gonçalves (percussão) e o convidado Mauro Senise (sopros) se lançaram numa tarefa arrojada: dar a volta por cima, num mar de impossibilidades.
SEM MEDALHÕES, MAS COM UM INSTRUMENTAL PERFEITO
Wladimir Soares – Jornal da Tarde, 21/03/1980
O Grupo Um toca jazz e é formado pelos mais competentes instrumentistas … O forte do conjunto é a sua virtuosidade técnica, talento que eles já exibiram tocando com Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e Marlui Miranda. O disco que eles gravaram chama-se Marcha Sobre a Cidade e tem apenas seis faixas, todas elas ótimas e instigantes nas suas improvisações jazzísticas.
UM GRUPO DE VANGUARDA
José Domingos Raffaelli – Jornal do Brasil, 30/03/1980
… A música do Grupo Um engloba influências contemporâneas, inclusive o free jazz, porém organizado e disciplinado. A maturidade dos músicos permite-lhes todo o tipo de liberdades melódicas, rítmicas e sonoras, explorando habilmente as facetas de cada composição. Todos os seus integrantes têm relevante participação no contexto, seja nas improvisações coletivas ou pela forma quase intuitiva como qualquer deles sugere motivos adicionais. Eles têm plena consciência dos objetivos a que se propõem, sabendo exatamente a direção musical a seguir e a natureza exploratória das suas investigações do material temático. ...
Lelo é um jovem pianista com um brilhante futuro à sua frente. Líder do conjunto, imprimiu a estampa da sua personalidade em quatro composições interessantes, revelando-se um músico confiante que ainda deverá evoluir muito e expandir sua obra como compositor. … a faixa-título, uma peça do gênero free, … mostra uma imaginação requintada, num dos momentos mais empolgantes do disco. …
Marcha Sobre a Cidade representa um passo à frente na música instrumental em nosso país. É uma abertura para o músico brasileiro que tanto anseia projetar a sua concepção, a sua vivência, e desenvolver todas as suas aptidões. É uma das realizações mais sérias já levadas a efeito entre nós, sem concessões de qualquer espécie. Iniciativas desse porte devem merecer o apoio daqueles que se interessam seriamente pela música instrumental, especialmente a de vanguarda.
MAURO SENISE E O GRUPO UM
Roberto Muggiati – Manchete, 05/04/1980
… Na mais recente safra de lançamentos instrumentais, destaca-se uma gravação independente do Grupo Um, Marcha Sobre a Cidade. … São estruturas de uma certa complexidade, com alternância de ritmos – enfim, um som instrumental de vanguarda em que o Grupo Um e Mauro Senise mostram o elevado nível atingido pelos jovens músicos brasileiros.
GRUPO UM A MIL
Mônica Mattar – Canja, julho de 1980
Quem não viu, reze 3 ave-maria e 2 padre-nosso de penitência … o disco foi gravado num único dia, um milagre quando se sabe da complexidade das músicas e da precisão necessária para executá-las.
– “Não é milagre, não. É que o grupo está sempre afiadíssimo”. …
INDEPENDENTES, UM NOVO FÔLEGO CRIATIVO
João Marcos Coelho – Folha de S. Paulo, 08/03/1981
… Já se catalogaram mais de uma centena de discos “independentes”, prensados entre o ano passado e início deste. E, pelo menos 10% deles são de música instrumental feita por grupos paulistas. … O disco Marcha Sobre a Cidade, do Grupo Um, é o mais denso em inovações. Suas mil cópias já foram totalmente vendidas, e Lelo Nazario, pianista-líder, atualmente na Europa, parece constituir-se no músico mais completo desta geração. O som do grupo aglutina influências da vanguarda erudita com o free jazz mais avançado.
RESENHA EJAZZ: MARCHA SOBRE A CIDADE
Valter Alnis Bezerra – Ejazz, janeiro de 2003
… Marcha Sobre a Cidade é um disco assombroso, que poderia ser descrito, em poucas palavras, como um verdadeiro manifesto free brasileiro. Ele nos apresenta, por um lado, uma vertiginosa e feroz liberdade criativa, mas também, por outro lado, um pensamento musical altamente racional e estruturado. … A música do Grupo Um, embora geralmente atonal – ou, no mínimo, com harmonias modais – estava longe de ser caótica ou maçante como a da maioria dos grupos free tradicionais. Ela dispunha, ademais, de uma estimulante pulsação, um beat especificamente brasileiro. …
Nas mais de duas décadas que se passaram, Marcha Sobre a Cidade não envelheceu nada. Nas notas do livreto que acompanha o CD, Lelo comenta sobre a simplicidade do estúdio de que o grupo dispunha em 1979 para gravar o disco. Isso prova, mais uma vez – especialmente nestes tempos que correm, em que a alta tecnologia, os efeitos digitais e o excesso de produção são frequentemente usados para mascarar a falta de conteúdo musical – que nada é obstáculo quando se tem um grupo de músicos com mentes criativas, sensibilidade apurada e elevada proficiência técnica, reunidos em torno do objetivo de criar uma música pura, inventiva e livre.
MARCHA SOBRE A CIDADE
Marcos Vinícius Leonel – Peduvido, 08/072008
Era o ano de 1979 e a música instrumental estava passando por uma série de mudanças mercadológicas e estéticas. No Brasil estava começando a abertura do mercado através de lançamentos independentes. Na Europa existia um movimento em torno da gravadora ECM records, que lançava discos de jazz com uma estética própria. Nos Estados Unidos existiam várias tendências, desde o radicalismo tradicionalista até o experimentalismo eletrônico que se desdobrava em diversas tendências. “Marcha Sobre a Cidade” surge exatamente nessa efervescência.
… o Grupo Um fazia música de altíssima qualidade, em um nível de improvisação extremamente complexo e com uma capacidade criativa fora do normal.
A banda paulistana ainda lançaria mais dois discos: “Reflexões sobre a crise do desejo”, em 1981 e “A flor de plástico incinerada”, em 1982, todos com a mesma pegada fenomenal de sempre e com um raro senso de improvisação, a verdadeira alma do jazz. Sem delírios instrumentais sobre uma base harmônica o jazz fica enfadonho e triste. E é exatamente esse o diferencial do Grupo Um em relação às outras bandas independentes do período, como Pé ante Pé; Metalurgia; Pau Brasil; Medusa; Divina Encrenca; e vários outros.
As incursões pelo free jazz; pelo primitivismo étnico; pelo abstracionismo da música impressionista; pela fragmentação da música minimalista; pelos ruídos e intervenções da música concreta; pelas células harmônicas e melódicas da música de câmera contemporânea; bem como pelas harmonias complexas da música brasileira; além das inúmeras experiências atonais do jazz contemporâneo, projetam o Grupo Um para além do novo tradicionalismo careta dos irmãos Marsalis e muito próximo do experimentalismo das improvisações de Ornette Collemam, Pharoah Sanders, Sun Ra, e bandas como o Art Ensemble of Chicago.
… e a alucinação sonora de Lelo Nazário, um dos maiores pianistas e criadores de todos os tempos da música brasileira. Dono de uma visão extremamente particular sobre estética musical, um verdadeiro mago.
Muitos discos fenomenais foram lançados na década de 70, nesse segmento de música instrumental. Miles Davis; Keith Jarret; … Bill Evans, Whether Report, Flora Purim, Raul de Sousa, Airton Moreira e tantos outros artistas essenciais lançaram discos históricos, mas nenhum me impressionou tanto quanto “Marcha sobre a cidade”. Esse é um disco que juntou tudo o que eu tinha escutado até o período, através do trabalho jazzístico de vários artistas, de diversas tendências, mas com a tenacidade e a pauleira do jazz-rock, sem ser de forma nenhuma uma sonoridade rockeira. A faixa que dá título ao disco é uma verdadeira marca registrada do jazz universal.
Lelo Nazário se queixa, nas notas da capa do relançamento em cd, da incompreensão dos críticos brasileiros sobre o princípio criador do free-jazz. Isso é histórico e não vai acabar nunca, pois a crítica brasileira é careta. Essa mesma crítica, dita especializada, que tem “grande apreço pela música de vanguarda”, principalmente a crítica paulista, foi incapaz de reconhecer … o valor do Grupo Um, taxando a sua música de cerebral.
No entanto, o que se tinha na mão … era um dos discos mais importantes da música instrumental brasileira. Um disco histórico em todas as suas dimensões. Essa é uma verdadeira aula de improvisação e força criativa, só igualada pelos mestres Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Ouvir as escalas outsiders de Lelo Nazário e seus acordes enigmáticos, bem como a pegada estratosférica e os ruídos do sax soprano de Mauro Senise, e os andamentos aloprados de Zeca Assumpção e Zé Eduardo Nazário é uma experiência interplanetária. Isso é história pura, verdadeira e marginal.