Grupo Um | Reflexões sobre a Crise do Desejo
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A Beleza Poética das Reflexões
Irati Antonio

Com a excepcional repercussão de Marcha Sobre a Cidade, o Grupo Um, que até então era conhecido principalmente em São Paulo, conquistou cultores do jazz de vanguarda e um público crescente no Brasil e na Europa. Seus integrantes passaram a usufruir do merecido reconhecimento pela importância e qualidade artística de sua música.

Em 1981, enquanto o selo Lira Paulistana lançava a segunda edição de Marcha, os músicos já se preparavam para gravar o “segundo disco, com novas composições que Lelo vinha desenvolvendo”, recordou Zé Eduardo Nazario. Reflexões Sobre a Crise do Desejo…/, também uma produção independente, vinha para “reafirmar o compromisso do Grupo Um com essa mistura especial da música de vanguarda, o jazz e a música brasileira contemporânea”, observou Lelo Nazario no encarte da edição do álbum em CD, em 2005.

Gravado em 13 e 14 de junho de 1981 no Estúdio JV, dos músicos Vicente Sálvia e Edgard Gianullo, em São Paulo, o disco foi lançado logo em seguida. Além de Lelo no piano, Zé Eduardo na bateria e Mauro Senise nos sopros, os três da formação original de Marcha Sobre a Cidade, Reflexões contou com a participação de Rodolfo Stroeter no baixo, em substituição a Zeca Assumpção que se mudara para o Rio de Janeiro, e do alemão radicado em São Paulo Felix Wagner no piano elétrico e clarinete.

Este segundo álbum é um marco na trajetória do grupo. Assim como acontecera com Marcha, Reflexões recebeu elogios dos mais conceituados críticos de música da época, elevando o Grupo Um ao mais destacado patamar da música instrumental no Brasil. Roberto Muggiati, que escrevia para a revista Manchete, considerou o LP um dos dez melhores álbuns de 1981, em lista que incluía Miles Davis, Dexter Gordon, Egberto Gismonti e César Camargo Mariano, entre outros. “Como o título indica, este novo trabalho do Grupo Um não é de leitura fácil”, comentou o crítico na matéria “Grupo Um, volume dois”, publicada pela revista em novembro daquele ano. “Mais que o primeiro álbum, ele aprofunda a exploração de tensões e climas sonoros, deixando menos espaço para solos individuais”, complementou.

Com quatro das suas cinco faixas escritas por Lelo Nazario, neste disco, “o conjunto desenvolveu alguns de seus temas mais complexos, reunindo composições extremamente elaboradas com uma técnica musical incrivelmente apurada, atingindo resultados impressionantes”, observou Marcelo Bacha, produtor do selo Editio Princeps, que reeditou a trilogia do grupo em formato digital.

Desde a primeira faixa, “O Homem de Wolfsburg”, “com seus complexos acordes”, até a faixa-título, “que combina improvisos livres coletivos”, Reflexões mostra a sua “altíssima qualidade artística”, elogiou João Marcos Coelho na resenha intitulada “Grupo Um, a música nova e independente”, na Folha de S. Paulo, em outubro de 1981. Ao final da resenha, o crítico convocava o público e os músicos a assistir ao show de lançamento no Teatro Lira Paulistana, em São Paulo, a fim de “conhecer os rumos futuros da música instrumental brasileira mais avançada”.

O disco incluiu também “Mobile/Stabile”, uma composição eletroacústica que Lelo escreveu em 1976 e que fora apresentada pelo Grupo Um no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo de 1978, ao lado do trompetista Márcio Montarroyos. Na ocasião, a peça soou estranha tanto a um público não habituado à música contemporânea e a uma parte da crítica especializada, surda a novas formas de expressão, quanto à própria organização do festival que, sem compromisso com a arte, acabou forçando a interrupção do concerto.

“‘Mobile/Stabile’ dissolvia em ácido o jazz do festival e mandava para os ares as tradições musicais com a explosão de uma bomba atômica”, sentenciou o ensaísta Luiz Roberto Schaffner, em matéria intitulada “Os músicos na jaula da organização”, publicada no conceituado semanário Leia Livros, em outubro de 1978.

Três anos depois, ao aparecer gravada em Reflexões, a música continuou a provocar estrondos e avaliações entusiasmadas da crítica. A faixa é “a mais hermética do disco”, declarou João Marcos Coelho na Folha de S. Paulo. “Uma incursão free”, observou Roberto Muggiati em Manchete.

Realizada sobre uma base pré-gravada, “Mobile/Stabile”, na opinião de José Domingos Raffaelli, na resenha “A música de vanguarda do Grupo Um”, publicada no Jornal do Brasil em abril de 1982, apresenta “um clima autêntico de jazz de vanguarda… num processo instintivo de organização e profundo conhecimento do idioma, numa atuação que é, sem qualquer sombra de dúvida, a mais avançada jamais perpetuada no Brasil”. Para o crítico, o álbum Reflexões “indica uma nítida evolução sobre o disco anterior, transparecendo maior maturidade, integração e concepção mais arrojada, projetando o conjunto num plano de destaque do jazz e da música de vanguarda entre nós”.

Ao comentar a repercussão do disco, Raffaelli observou que o então diretor artístico do Festival de Berlim, o pianista e compositor suíço George Gruntz, em visita ao Brasil na ocasião, “ficou impressionado com Reflexões Sobre a Crise do Desejo…/”, tendo declarado: “quando músicos do calibre dos integrantes do Grupo Um criam algo tão avançado e significativo como ‘Mobile/Stabile’, situam-se no nível dos melhores do mundo”.

Complementavam o álbum “América L”, uma peça para piano e bateria também de Lelo, “um exercício do espírito da liberdade musical pelo duo dos irmãos Lelo e Zé Eduardo”, como destacou Raffaelli, e “a excepcional ‘Vida’”, como observou João Marcos Coelho sobre a peça rítmica de Zé Eduardo. “O destaque do disco fica para o piano acústico de Lelo Nazario, harmonicamente denso, em contraste com sua linha melódica cheia de arestas”, arrematou Roberto Muggiati.

No programa da série de shows para divulgar o álbum, realizada pelo Grupo Um na Sala Funarte, no Rio de Janeiro, em julho de 1981, Fernando Libardi, que assinava a direção do espetáculo, e Paulo Moura comentavam que, para apresentar o grupo, “a palavra novo é inadequada e inconsistente, pois… pode-se dizer que existe entre nós um movimento instrumental da maior importância e o Grupo Um representa, nesse cenário, como seu próprio nome diz, um dos seus primeiros expoentes”.

Reflexões Sobre a Crise do Desejo…/ introduziu na música brasileira o uso de sons concretos / eletrônicos e doses de atonalismo combinados ao free jazz e a harmonias contemporâneas, originando uma sonoridade muito própria e cheia de energia. Mais: para além da criação artística, o Grupo Um trabalhava as linguagens modernas procurando, com uma percepção mais profunda, enfrentar as questões fundamentais do nosso tempo. Autor da maioria dos temas do álbum, Lelo explicou assim o seu título: “quisemos dar um passo à frente em relação ao free dos anos 60 nos Estados Unidos, quando se fazia uma música que buscava representar o caos da realidade social americana, principalmente a segregação racial. Tentamos dar uma resposta positiva à feiúra da realidade que nos cerca por meio da beleza poética”.
Reflexões sobre a Crise do Desejo por Lelo Nazario
Texto publicado no encarte da reedição do álbum em CD (2005)

Reflexões Sobre a Crise do Desejo…/ é um disco que reafirma o compromisso do Grupo Um com essa mistura especial da música de vanguarda, o jazz e a música brasileira contemporânea. Traz a especial colaboração de dois músicos brilhantes e carismáticos: Mauro Senise nos sopros, um perfeccionista extremo na execução dos seus instrumentos, e Felix Wagner, multiinstrumentista alemão (na época radicado aqui), tocando piano elétrico e clarinete alto. “O Homem de Wolfsburg”, música que inicia o CD, foi composta em sua homenagem. O título faz referência à sua cidade natal e é também uma brincadeira com títulos de livros e filmes de espionagem durante a guerra fria. Começa com uma introdução de piano, composta como uma balada, que acabei tocando num andamento bem rápido, só para chatear o alemão… Além de músicos incríveis, Mauro e Felix são pessoas de uma generosidade sem igual, cuja contribuição foi essencial no trabalho e na sonoridade do Grupo Um.

“America L” foi escrita como um dueto para piano e bateria em que todas as frases do tema são literalmente “cantadas” pelos tambores, pratos e bumbo, num diálogo complexo, preciso e bastante elaborado com o piano. Tendo o Zé Eduardo como irmão, todos podem imaginar a quantidade de duetos para piano e bateria que realizamos ao longo de todos estes anos, no entanto, sem sombra de dúvida, este é o nosso preferido.

Ao preparar as fitas magnéticas originais para a transferência digital, pude constatar que a música continua vívida e íntegra como no dia em que foi executada pela primeira vez. Ainda mais se levarmos em conta as dificuldades técnicas de se captar variações dinâmicas enormes (quando o grupo tocava fortissimo era realmente fortissimo…). Tais dificuldades eram ainda maiores numa peça como “Vida”, toda gravada em overdubs, mas com poucos canais, o que obriga tanto o músico como o engenheiro de som a malabarismos incríveis durante a sessão. Já “Mobile/Stabile”, que era realizada sobre uma base pré-gravada construída somente com sons eletrônicos, apresentava dificuldades opostas, ou seja, a impossibilidade de dobras ou regravações de eventuais erros nos obrigava a uma execução direta da obra, sem interrupções.

O disco marcava também o início da colaboração de Rodolfo Stroeter como baixista, em substituição a Zeca Assumpção que aparece aqui na faixa bônus “Mata Queimada”, originalmente composta como trilha para um documentário. Embora gravada antes mesmo de Marcha Sobre a Cidade, ela se encaixa perfeitamente na proposta musical de Reflexões e traz também a participação de outro grande músico, o saxofonista Roberto Sion, que nesta sessão toca com um sax soprano Buffet Crampon, de sonoridade ligeiramente diferente do habitual Selmer.

Tocar com músicos tão especiais foi uma experiência musical e pessoal única, cheia de processos criativos enriquecedores, retratados neste relançamento com a produção requintada da Editio Princeps.

Lelo Nazario, outubro de 2005

MÚSICOS

Lelo Nazario - piano acústico
Zé Eduardo Nazario - bateria, percussão, flauta da Tailândia
Rodolfo Stroeter - baixo

Convidados:
Felix Wagner - piano elétrico, clarinete
Mauro Senise - sopros
Zeca Assumpção - baixo acústico (6)
Roberto Sion - sax soprano (6)

FAIXAS

1. O Homem de Wolfsburg 3’26”
2. America L 3’19”
3. Vida 2’50”
4. Mobile / Stabile 9’09”
5. Reflexões Sobre a Crise do Desejo 4’03”

Faixas bônus no CD:
 
6. Mata Queimada 1’43”
7. O Homem de Wolfsburg (2) 4’26”
8. Reflexões Sobre a Crise... (2) 1’59”
LP Reflexões Sobrea Crise do Desejo.../ (1-5) / Independente
Produção: Grupo Um / JV Criação e Produção. Gravado em junho de 1981 (13 e 14) no estúdio JV e lançado como LP independente “Y JV-002”. Mixagem engenheiro de som: Sérgio Kenji Okuda (Shao-Lin). A base pré-gravada de “Mobile/Stabile” foi mixada por Flavia Calabi (Radar Studio) e Luiz Roberto Oliveira. Coordenação de estúdio e Programação Visual Lelo Nazario. Fotos: Eliana Laurie. Concepção e arranjos de bateria e percussão: Zé Eduardo Nazario.


Relançamento CD / Editio Princeps
Produção executiva: Marcelo Spindola Bacha para Editio Princeps. Masterização digital: Lelo Nazario no Utopia Studio, em outubro de 2005. Textos: Lelo Nazario e Zé Eduardo Nazario. Revisão: Irati Antonio. Projeto Gráfico: Rodrigo Araujo e Adriana Cataldo. Fotos: Eliana Laurie e Loris Machado.

Faixas 7-8: mesmas sessões do LP, versões alternativas. Faixa 6 gravada no estúdio Vice Versa B em 1977 para trilha de um documentário.
IMPRENSA

GRUPO UM, A MÚSICA NOVA E INDEPENDENTE
João Marcos Coelho – Folha de S. Paulo, 12/10/1981

A nova geração de instrumentistas brasileiros … não pensa mais em termos de aparecer a qualquer custo. Nem se submete ao esquemão marginalizante em que geralmente se joga a música instrumental no Brasil. Pelo contrário, constrói com muito trabalho – e principalmente pesadas cargas de informações musicais, tanto populares quanto eruditas – uma obra que certamente colocará a criação musical brasileira mais avançada dos anos 80 em posição de liderança no contexto internacional.

Vários grupos se constituíram em torno do Teatro Lira Paulistana, no bairro de Pinheiros. Um, porém, se afirma como o mais fecundo núcleo de criação, porque mergulhou numa produção musical sistemática, sem concessões: o Grupo Um … mostra a um público crescente o resultado de suas últimas pesquisas. … Seu segundo LP se chama “Reflexões sobre a Crise do Desejo”, título que Lelo assim explica: “Quisemos dar um passo à frente em relação ao free dos anos 60 nos Estados Unidos, quando se fazia uma música que buscava representar o caos da realidade social americana, principalmente a segregação racial. Tentamos dar uma resposta positiva à feiúra da realidade que nos cerca por meio da beleza poética”.

Em “O Homem de Wolfsburg”, … há uma introdução livre ao piano que contém, em seus complexos acordes, todas as sequências harmônicas que em seguida servirão de riffs para os improvisos. …

Tudo isso, é claro, não afeta a altíssima qualidade artística de “Reflexões sobre a Crise do Desejo”. ... é imprescindível ao público interessado em conhecer os rumos futuros da música instrumental brasileira mais avançada – e também aos músicos profissionais em geral – ir até o Lira, hoje e amanhã. Pois ouvirão não somente a feiúra da nossa realidade, mas a beleza poética que cada vez mais se afasta de nós.



GRUPO UM, VOLUME DOIS
Roberto Muggiati – Manchete, no. 1543, 14/11/1981

Em seu novo disco, o Grupo Um ... é para mostrar que estes músicos, … além de muita cancha, possuem um notável senso de equipe, aperfeiçoado ao longo dos últimos anos. Como o título do LP indica, este novo trabalho do Grupo Um não é de leitura fácil. Mais que o primeiro álbum, ele aprofunda a exploração de tensões e climas sonoros, deixando menos espaço para solos individuais. ... uma incursão free em “Mobile/Stabile”… O destaque do disco fica para o piano acústico de Lelo Nazario, harmonicamente denso, em contraste com sua linha melódica cheia de arestas. … Uma coisa Reflexões reflete: o alto nível alcançado por nossa (ainda) tão pouco prestigiada música instrumental.



A MÚSICA DE VANGUARDA DO GRUPO UM
José Domingos Raffaelli – Jornal do Brasil, 16/04/1982

O Grupo Um despertou interesse inusitado entre os cultores do jazz de vanguarda a partir de 1979, quando foi editado o disco Marcha Sobre a Cidade; até então conhecido somente em São Paulo, conquistou novas audiências em outras cidades. Após uma bem-sucedida viagem à França e Alemanha, Lelo, Felix e Rodolfo reuniram os demais companheiros no estúdio para gravar Reflexões Sobre a Crise do Desejo, que indica uma nítida evolução sobre o disco anterior, transparecendo maior maturidade, integração e concepção mais arrojada, projetando o conjunto num plano de destaque do jazz e da música de vanguarda entre nós.

… a improvisação de Lelo, apoiada numa execução de grande virtuosismo técnico, denota um grau de imaginação e criatividade acentuados. “America L” é um exercício do espírito da liberdade musical pelo duo dos irmãos Lelo e Zé Eduardo … “Mobile/Stabile”, … criando um clima autêntico de jazz de vanguarda… num processo instintivo de organização e profundo conhecimento do idioma, numa atuação que é, sem qualquer sombra de dúvida, a mais avançada jamais perpetuada no Brasil. … A faixa-título é reservada a Lelo / Rodolfo / Zé Eduardo … Os três revezam-se sem qualquer predomínio de um instrumento sobre o outro, na melhor tradição do free jazz.

Recentemente, em visita ao Brasil, o pianista e compositor George Gruntz, que ficou impressionado com Reflexões Sobre a Crise do Desejo, declarou: “Quando músicos do calibre dos integrantes do Grupo Um criam algo tão avançado e significativo como 'Mobile/Stabile', situam-se no nível dos melhores do mundo”. …